"As mulheres percorreram um longo caminho, semeado de sangue, suor e lágrimas"

Vera Duarte
Vera Duarte (Mindelo, 1952) é jurista e escritora caboverdiana. Foi a primeira mulher a ser eleita para a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos e o seu incansável ativismo social na luta pela defesa dos direitos humanos foi reconhecido, entre outros, com o Prêmio Norte-Sul do Conselho da Europa.

Continua a acreditar na literatura como instrumento de denúncia social, contra as injustiças, pela liberdade e o amor ao povo?

Sempre, sempre! Mas também acho que se não acreditasse se sobraria. Veja o que Harriet Beecher Stowe, ao escrever o romance A Cabana do Pai Tomás, fez em prol da liberdade para milhões e milhões de negros, ao denunciar a desumanidade da escravatura nas plantações de algodão e tabaco norte-americanas.

Veja o que George Orwell fez em prol da liberdade ao denunciar os universos concentracionário em suas obras 1984 e A revolução dos porcos. Veja o que fez Frantz Fanon em prol da luta contra o colonialismo e o racismo ao escrever o livro Peles negras máscaras brancas. Essas são já vozes universais. Mas é sempre a palavra escrita! E é nessa linha da palavra escrita que aparecem outras vozes, como a minha e de tantos outros, que acreditam na literatura como instrumento de denúncia social, contra as injustiças, pela liberdade e pelo amor. Por isso escrevermos…

Fala de "dar voz à voz das mulheres". Com sua experiência em âmbitos tão diversos e desde países também diferentes: tem constatado mudanças neste aspecto nos últimos anos?

Mudanças radicais. Desde o tempo em que se questionava se a mulher era realmente um ser humano, até a atual proclamação da Igualdade e Equidade de Género, que preenche hoje as agendas nacionais e internacionais, que as mulheres percorreram um longo caminho, semeado de sangue, suor e lágrimas. Hoje já estamos travando um novo combate, contra o memoricidio, procurando dar visibilidade à participação das mulheres ao longo da história, que foi tão silenciada.

Tem números, vou dar uma pequena amostra do caminho percorrido recentemente: (i) No plano nacional, em 1978 eu fui a primeira mulher a entrar para a Magistratura caboverdiana. Em 2020, tanto a magistratura judicial como a do ministério público já são paritárias, dentro das margens dos 40 a 60%. (ii) No plano africano -Em 1993 fui a primeira mulher a ser eleita para Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, ou seja 1 mulher e 10 homens. Em 2020 dos 11 comissários, 6 são mulheres ou seja plena paridade.

É certo que ainda temos um longo caminho a percorrer, sobretudo se atentarmos à situação da mulher em algumas regiões do globo. Mas já temos muitas mudanças positivas a assinalar.

Participou na Galiza no ciclo Poetas Di(n)versos. Como foi esse encontro, essa experiência? 

Estar na Galiza participando no Círculo de poetas Poetas Di(n)versos, na companhia da poeta e Yolanda Castanho foi simplesmente maravilhoso. A sessão de leitura de poesia ocorrida no Centro Ágora na Corunha, na companhia da também poetisa Lucía Novas, foi verdadeiramente um momento único. A forma como público presente escutou e aplaudiu minha poesia foi emocionante e deu-me a certeza de estar a ser compreendida e cumplicizada pelos presentes e isto é tudo o que se pretende ao dizer poesia.

O encontro com Yolanda Castanho e com outros, foi muito enriquecedor e tive a oportunidade de quase assistir à abertura da Residência Literária, que, confesso fiquei com muita vontade de visitar. Também foi motivador a oportunidade de gravar um vídeo à intenção da Comunidade caboverdiana que vive na Galiza. 

A morna foi proclamada Património Imaterial Cultural da Humanidade. A relação entre literatura e oralidade, a oratura, é importante em sua escrita?

A morna tem sido a forma por excelência de expressão da alma e da idiossincrasia cabo-verdianas. Toda a história de Cabo Verde, seja ela macro ou micro, seja a nível coletivo ou individual, encontra-se refletida ou inspira alguma composição musical, sobretudo a morna. Assim desde a saga do povo caboverdiano, a colonização, a escravatura, as secas, as fomes, as idas para São Tomé como contratados, a luta pela independência, a proclamação do estado, a reconstrução nacional, a democracia, os direitos humanos, até à liberdade, o amor, a amizade, a traição, o ódio, a alegria, o trabalho, os ritos de passagem, tudo se encontra espelhado nas letras das mornas.

A morna faz parte da idiossincrasia caboverdiana. Assim embora não influencie diretamente a minha escrita, está lá sempre presente e subjacente. Ela é a nossa principal forma de oratura, pois se expressa sobretudo na língua caboverdiana e nós somos aquilo a que chamo, de um povo imperfeitamente bilingue: falamos em português e em crioulo embora mais em crioulo do que em português, escrevemos ainda muito em português embora estejamos a desenvolver cada vez mais a escrita em língua caboverdiana.