Rosalia em música

Seria um tópico dizer que toda a obra de Rosalia é musical, ainda que um tópico verdadeiro. Musical polo ritmo e a melodia implícita no recitado, musical pola métrica regular e as inovadoras rupturas métricas, mas musical também polo canto, os Cantares que inícia essa voz primeira ao mandado da terra, ou do povo, que é o mesmo. Musical pola Alborada que força a poeta a submeter o verso, e em fim, pola estética emocional ante a paisagem, os amores e desamores e o desgarro que provoca a pobreza e a injustiça. Nada estranha, pois, que Rosalia seja poeta de preferência para musicar, ao que também não é alheia a empatia com um povo que a mitificou desde os inícios e que a sente como figura simbólica a quase cento e quarenta anos da sua morte. Rosalia é com muito a poeta que mais serviu a música galega, diz Xaime Estévez Vila, engadindo que um dez por cento das gravações editadas de música galega a têm como referência. Em 150 discos do seu arquivo, Rosalia é a autora das letras, e essa hegemonia é clara, mesmo se não se contasse o tema Negra Sombra, o mais emblemático e prolífico em versões. Pola sua parte, o vilagarcião Xulio Mosquera, que acaba de doar ao Centro de Estudos Rosalianos quatrocentas partituras inspiradas nos versos da nossa escritora, depois de ter dezaoito mil partituras e discografia de todo o mundo nas suas mãos, afirma que "nengum poeta lírico foi tão musicado como ela. Nem San Juan de la Cruz, nem Miguel Hernández, nem Lorca, nem Machado. A que mais, Rosalia". E embora resulte óbvio, a poeta galega tem absoluta vigência na música popular de hoje, como afirma José Ramón de la Mar, gozando mesmo de versões de rap, e sendo os poemas mais musicados "Negra Sombra" (11 autores), "Maio longo" (4 autores), "Airiños, airiños aires (4 autores) e "Adiós ríos, adiós fontes" (7 autores). Assim mesmo, continua De la Mar, desde 1962 utilizaram poemas de Rosalia numerosos músicos do entorno pop, não apenas folcloristas, e na web "cancioncontodos" da SGAE registam-se 76 poemas diferentes de Rosalia musicados e gravados nuns trinta discos desde o citado ano até os nossos dias. Un proxecto saca á luz a faceta máis musical de Rosalía de Castro Não se pretende aqui dar um inventário, que a partir dos dados oferecidos pode fazer quem quiser, mas pôr em destaque o que nos parece mais relevante ou certas curiosidades. Na página "sondepoetas" é possível ler cinquenta poemas rosalianos e ouvir versões musicais diversas, enquanto a Fundación Rosalía de Castro apresenta uma compilação feita por Pilar Ponte ("A Profa") e Roxelio García, com diferentes interpretações –muitas ao vivo– e em geral bem referenciadas. Voltando a Xaime Estévez, para ele quase todos os grupos ou artistas que usam a voz, usaram as letras inspiradoras de Rosalia, não só os coros, senão outros estilos como o Pop, o Jazz, o Rock, o Folque, o Vocal clássico, Cantautores e outros registos. Sinala, porém, que se contam com os dedos de uma mão os monográficos de música e letra dedicados a Rosalia. Nestes monográficos, Roxelio García e Pilar Ponte citam os de Amancio Prada (Rosalía de Castro, 1975, e Rosas a Rosalía, 1997), o de Abe Rábade Quartet, Guadi Galego &amp; Anxo Angueira Rosalía XXI (2008), o de Uxía Rosalía pequeniña (2013) e o de Eliseu Mera e Cándido Cabaleiro Rosalía cantada (Fundación Rosalía de Castro, 2021). Porém, não incluem o de Dolores Plata intitulado Lúa descolorida (1985), um achegamento ao jazz com composições de Nani García, Rodrigo Romaní e Antón Seoane, que sim cita e comenta Xaime Estévez, como também a gravação em cassete de Aurora López, Maruja Iniesta e Maruxa Villanueva com vozes e piano, editada pola Fundación Rosalía de Castro em 1996. A estes monográficos cumpriria engadir o de Najla Shami, Na lingua que eu falo (2013), o de Fran Pérez Narf, Nas tardes escuras (2013) ou o de O Val das Mouras, Rosalía (2015), mencionados por José Ramón de la Mar, e o seguinte do último grupo, A xustiza pola man (2017). Dioivo: "Non se adoita pensar nun poema de Rosalía de Castro do século XIX e na música metal" Mas como dizíamos antes, Negra sombra é o tema mais emblemático, o tema estrela da música galega em palavras de Estévez, o que representa a alma galega sobre o poema sem título de Follas novas ("Cando penso que te fuches") que igualmente resulta representativo ou definitório de Rosalia de Castro pola sua ambiguidade simbólica e o seu significado enigmático. Falamos da música de Montes, composta em 1892 e estreada no mesmo ano com grande sucesso no Gran Teatro da Habana. Juan Montes, que conhecia bem a obra rosaliana, baseou-se num alalá do Íncio para compor a obra coral a quatro vozes, a partir da qual se sucedem múltiplas versões, incluíndo mais de trescentas gravações discográficas. Este fazer de Montes, que bebendo no folclore popular o transcende por via culta, estaria na esfera do Nacionalismo Musical de filiação romântica que, à par do europeu, iniciara Marcial del Adalid –formado em Paris a carão de Liszt– e depois seguiram Pascual Veiga e o próprio Montes, como tem assinalado, por exemplo, Luísa Villalta. Neste sentido, não estaria de mais comentar que, se de muitos poemas de Rosalia se criaram diversas melodias, quase todas as versões de Negra sombra interpretam a música de Montes, se bem com a liberdade de cada artista. Parece que o fascínio dessas harmonias tivesse uma força telúrica que nos arrastasse a segui-las irremediavelmente. Muitos conhecemo-las de novos ouvindo e cantando em corais, sempre a experimentar um estado de alma indescritível, em vozes mixtas ou às vezes quatro vozes só de homens, o que acentua o som lúgubre da peça. Qualquer de nós pode hoje escuitar o coro Cantigas da Terra, a Coral Polifónica de Pontevedra ou mesmo o Orfeón Donostiarra e estremecer com os sons mais autênticos. Quase não há coral que não tenha a Negra sombra no seu repertório, na Galiza e fora dela. Sem variar em absoluto a harmonia existem recentes adaptações para instrumentos, como a de Alfonso Morán que transcreve e adapta para quarteto de corda a partitura original de Montes para o Cuarteto Egeria (Programa No bico un cantar, TVG 2013). Outra adaptação instrumental é a do duo Cordófonos com Carlos Méndez (contrabaixo) e Alejo Amoedo (piano), gravada em 2004. Diferente é o arranjo de Juan Durán, interpretado pola Orquesta Gaos e pola soprano Cristina Gallardo (2013). Ugía Pedreira leva as Follas Novas de Rosalía de Castro a París Entre as versões livres da música de Montes está a conhecida de Luz Casal e Carlos Núñez com a originalíssima colaboração de Ry Cooder na guitarra no disco A irmandade das estrelas (1996). O éxito foi notável, e provocou que a canção passasse a integrar o repertório de Luz numa linha semelhante, e que recentemente ela a gravasse com a Real Filharmonía de Galicia. Esplêndida é a versão em catalão de Maria del Mar Bonet, "Ombra Negra" (2001), a de Martirio em flamenco (2015), e como curiosidade apontamos a de Bibiano em 1979, a de Al Bano em 2006, Antoñita Moreno (1965), Pucho Boedo com Los Tamara, etc., sem esquecer conceitos rockeiros como o do grupo Astarot no disco O sentir dunha terra (2000). Mas deixando de parte Negra sombra, a poesia musicada de Rosalia começa a popularizar-se através nomeadamente dos cantautores desde a metade dos anos setenta, e aqui Amancio Prada tem um lugar preferente como pioneiro e pola intensidade do seu trabalho. Em 1974 grava em Paris o primeiro disco, Vida e morte, que já contém dous poemas rosalianos, e em 1975 edita o monográfico Rosalía de Castro com doze poemas de Cantares gallegos e Follas novas musicados. Aqui já estão "Campanas de Bastabales", "Pra Habana", "A xusticia pola man" ou "Adiós ríos, adiós fontes", e em 1997 grava Rosas a Rosalía onde se incluem "Como chove miudiño" e "Un repoludo gaiteiro" –que já estavam em Vida e morte– ou "Algúns din: ¡miña terra!" e "Negra sombra" num total de 18 canções, com a Real Filharmonía de Galicia e as vozes convidadas de María del Mar Bonet, Amélia Muge, Marisa Paredes, Martirio, Nuria Espert, María Dolores Pradera, Ginesa Ortega e as Pandeireteiras de Baio. Fóra dos monográficos, Luís Emilio Batallán edita em 1975 o LP Aí ven o Maio, cujo corte número 5 é "I a Nosa Señora detrás do tonel", correspondente ao poema número 32 de Cantares gallegos, o que começa "Si a vernos, Marica, nantronte viñeras", sendo o refrão glosado por Rosalia o que Batallán escolhe como título. As formas são diferentes às de Amancio Prada, numa sonoridade acústica de ritmos e acordes que lembram o folque de Dylan que se aproxima ao rock. Essa será a linha habitual de Luís Emilio. A partir daí diversos grupos e artistas interpretam musicalmente os poemas da autora. Emilio Cao ("O cravo", em Amiga alba e delgada, 1985), Miro Casabella ("Cando penso que te fuches", em Orvallo, 2004), Fuxan os ventos ("Iste vaise", La palabra más tuya. Cantando a Rosalía de Castro y G.A. Becquer. Varios artistas, 2003), Nao ("A xustiza pola man", As palabras espidas, 2007), Aid ("Unha vez tiven un cravo", Rapoemas, 2012), Cristina Fernández ("Adiós ríos, adiós fontes", Canta a Rosalía de Castro, 2012), Roger Mas ("Negra Sombra", Roger Mas i la Cobla Sant Jordi Ciutat de Barcelona, 2012), etc. E quanto à escolha dos poemas, às vezes trabalha-se sobre um poema completo, ainda sendo longo, e outras elege-se uma parte, como é o caso de Narf ("Ódiote", Nas tardes escuras, 2013) ou o meu mesmo ("Ódiote", Río de son e vento, 1998), do poema "En Cornes" de Follas novas. Finalmente, convido as leitoras e leitores a ouvirem diferentes versões de um poema referencial: "Tecín soia a miña tea". Por exemplo a de Pilocha com música de Antón Seoane (Calamidá sentimental, 1998), e a seguir a mesma melodia levada ao jazz na voz de Dolores Plata com Nani García, Baldo Martínez e Fernando Llorca (Lúa descolorida, 1998). As sensações podem ser diferentes, e o mesmo acontece se ouvimos as de Guadi Galego e Abe Rábade Quartet (Rosalía XXI, 2008), A banda da Loba (Fábrica de luz, 2019), Nuria Lorenzo e Alejo Amoedo com música de Juan Durán (Di)Versos femeninos, 2022), Roi Casal e Silvia Ferre (Lendas douradas, 2012), o grupo de rock Grilo (Tecín soia, 2022), e assim com qualquer outra. Rosalia não tem limites, e a música ainda menos.