Quem tem medo da regionalização?

A Constituição da República Portuguesa, aprovada em 1976, reconhece a existência de regiões administrativas em território continental, conferindo-lhes o estatuto de autarquias locais eleitas pela população. No entanto, Portugal continua a ser um dos poucos países da União Europeia onde não existe nível intermédio de governação. As consequências negativas do excessivo centralismo do país são cada vez mais notórias. As políticas ditadas a partir de Lisboa são territorialmente cegas e incapazes de responder à diversidade de contextos que o país abarca. Então, por que razão não avança a regionalização? Que condições faltam ao país para que se cumpra este imperativo constitucional? No debate público, o assunto parece despertar pouco interesse. Afinal, o centralismo convém a alguns. Um referendo condenado ao fracasso Em 1997, por acordo entre os principais partidos do poder, Partido Socialista (PS) e Partido Social Democrata (PSD), foi introduzida uma alteração constitucional que passou a vincular a regionalização à aprovação em referendo. Este seria celebrado no ano seguinte e rejeitado pela maioria dos votantes (61%), num sufrágio cuja taxa de abstenção foi superior a 50%. A rejeição do mapa proposto e o voto de protesto contra o partido que então governava (PS), defensor do "sim", são apontadas como as principais razões para este resultado. É em Lisboa que se concentra nao apenas o poder político mais também o económico e a atençao mediática Duas décadas depois, o primeiro Governo de António Costa volta a abrir o debate, iniciando, em 2018, um processo de descentralização administrativa e assumindo a intenção de realizar um novo referendo. Passados cinco anos de discussão e após a publicação do relatório da Comissão Independente para a Descentralização, o Governo do PS recua, afirmando que "não faz qualquer sentido" falar de um referendo, dada a oposição do líder do PSD, o maior partido da oposição. A regionalização volta, assim, a ser enterrada pelos dois partidos do poder. Dificilmente a votação de um novo referendo levaria a um resultado diferente do anterior. Isto porque, tal como têm alertado várias personalidades, a sua atual formulação sofre de um enviesamento antidemocrático. A aprovação obriga a uma votação maioritária em duas questões díspares. O eleitorado tem 1) de se posicionar em relação à instituição de regiões administrativas em Portugal e 2), perante a proposta de um mapa de regiões, responder se concorda com a criação em concreto da região onde vota. Basta a vitória do "não" à segunda pergunta e em apenas uma região para que seja travada a regionalização em todo o país. Sem considerar uma revisão constitucional que reformule um referendo assumidamente "convidativo a uma rejeição", não estaremos a debater seriamente a questão. Uma escala regional complexa Apesar desta questão ter hibernado durante duas décadas, a organização dos serviços públicos e a distribuição de fundos comunitários obriga à existência de estruturas regionais. As grandes protagonistas desta escala têm sido as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR). Com origem nas regiões-plano criadas em 1969, as CCDR têm desde os anos 80 alargado as suas competências na gestão e distribuição de fundos comunitários. Paralelamente, têm um papel cada vez mais relevante na dinamização do planeamento e de desenvolvimento regional. Os espaços regionais que dão corpo a estas entidades (Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve) são também usados para a organização regional de serviços periféricos do Estado como a agricultura, a educação e a saúde. O enraizamento social das CCDR é, no entanto, limitado. Por um lado, pela sua falta de legitimidade democrática e, por outro, pelas várias e sobrepostas referências regionais que subsistem em Portugal. Entre distritos, províncias, regiões de planeamento e entidades intermunicipais com nomes e abrangências territoriais em constante mudança, o país tem sido incapaz de consolidar espaços regionais de referência e com significado político, cultural e funcional. Portugal é Lisboa e o resto é paisagem Um estudo promovido pela Associação Comercial do Porto, em 2018, concluía que as empresas da Área Metropolitana Lisboa representavam 77% das vendas totais a entidades da Administração Central e 62% das vendas ao Estado. É em Lisboa que se concentra não apenas o poder político, mas também o poder económico e, consequentemente, a atenção mediática. Para as elites portuguesas o centralismo é cómodo e dificilmente abrirão mão das vantagens de controlar o país a partir do Terreiro do Paço.