Uma fotografia fora de foco

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) publicou os primeiros resultados do Censo demográfico 2022. A pesquisa deveria ter sido realizada em 2020 para compor uma série histórica com periodicidade de 10 anos, mas passou por percalços inusitados. O primeiro Censo do Brasil aconteceu em 1872. Trata-se de uma operação que pretende visitar todos os domicílios do país para contar seus habitantes e delinear suas características. Quem trabalha com políticas públicas e planejamento, por exemplo, depende pesadamente das informações coletadas pelo Censo. Elas abrangiam, desde meados do século XX, temas econômicos e sociais como mão de obra e sua qualificação, desemprego, rendimentos diversos, qualidade de vida, migrações e imigração, entre outros, em um dos maiores questionários do tipo no mundo. O Brasil ganhou 21,2 milhões de habitantes entre 2000 e 2010 e apenas 12,3 milhões de pessoas no último período de 2011 a 2022 Os dados qualitativos ainda não foram divulgados, mas já temos os números populacionais. Segundo o Censo, o Brasil tem 10 milhões de habitantes a menos que as estimativas oficiais, somando apenas 203.062.512 pessoas (éramos 190.732.694 em 2010). Há indícios de uma mudança radical na pirâmide etária. A taxa de crescimento populacional caiu de 1,17%, na última contagem, para 0,52% entre 2011 e 2022. Ou seja, o Brasil ganhou 21,2 milhões de habitantes entre 2000 e 2010 e apenas 12,3 milhões de pessoas no último período. O número de domicílios cresceu em 34%, atingindo 90,6 milhões, mas a média de moradores por casa foi de 3,31, em 2010, para 2,79 em 2022. Observou-se ainda uma tendência à redução de habitantes nas capitais, que respondem por 23% da população nacional, com variação negativa em nove delas. Falta de qualidade e implicações Há muita controvérsia quanto à qualidade desse processo: demorou demais para ser iniciado e completado, muitas pessoas se recusaram a receber os pesquisadores, sobretudo em regiões mais pobres, e trouxe muito menos informações que edições anteriores. As implicações do Censo, no entanto, serão bastante efetivas. Por exemplo, estados ligados ao agronegócio apresentaram maior crescimento populacional. Identificados com votos mais à direita, poderão pleitear aumento da sua representação de deputados no Congresso nacional. Cidades que perderam habitantes (2.399 dos 5.570 municípios brasileiros), como Salvador da Bahia, sofreriam reduções imediatas nos recursos federais destinados a políticas públicas - que foram amenizadas devido a uma lei de transição do presidente Lula. Tudo isso é bastante sério, mas o Censo 2022 padeceu, como tudo, os efeitos do governo de Jair Bolsonaro. O apagão de informações era política pública, com medidas como a mudança nos cálculos oficiais de desemprego e a simples sonegação dos dados de saúde durante a pandemia. A versão infantil explica que a Covid-19 impediu a realização do Censo em 2020, mas Bolsonaro cortou cerca de R$1,5 bilhão dos recursos destinados à pesquisa já em 2019. Posteriormente, a pandemia foi usada como argumento para abandonar o Censo em absoluto, mas uma decisão judicial de 2022 obrigou o governo a continuar o processo. A diretora do IBGE, a título de redução de despesas, retirou do questionário perguntas sobre renda familiar, formação escolar, posse de automóveis, motocicletas e geladeiras, migrações internas e valor de aluguéis. Na prática, essas ausências inviabilizam a aferição do déficit habitacional, das condições de vida e da pobreza. Lembro-me de responder o Censo do ano 2000, eu tinha 18 anos e dividia apartamento com um colega da faculdade. Quando o pesquisador chegou, lhe preparamos um café -parecia algo importante da vida adulta-. Divertimo-nos com os cálculos que ele fazia para nos classificar sócio-economicamente, já que não tínhamos renda própria, microondas, aspirador de pó e nem televisores. Em setembro de 2022, voltei a receber o pesquisador do Censo, mas já não lhe abri a casa. Acabávamos de nos mudar e a pesquisa estava atrasada em alguns meses. Quando o pesquisador disse que eu precisava informar os dados dos moradores antigos, respondi, com toda honestidade, que não era capaz, mas ele estava decidido a não aceitar um “não” como resposta. Acabei me penalizando e, na medida em que as opções me eram apresentadas, respondia tentativamente algo como “deve ser isso” às que me pareciam mais prováveis. A casa onde eu vivia antes -a que deveria ter sido pesquisada na máquina do tempo- estava vazia naquele momento. Posso afirmar com confiança que ao menos três habitantes não figuram entre os 203.062.512.