Jogos de desporto e diplomacia

A neutralidade do COI a respeito das relações internacionais e a defesa da não inferência dos assuntos políticos no desporto, um clássico no discurso por volta deste tipo de eventos competitivos, vem a ser questionada novamente para a celebração olímpica deste verão em Paris. Tomando como pretexto o conflito na Ucrânia, a Rússia e a Bielorrússia foram excluídas dos presentes Jogos argumentando a violação da trégua olímpica. Os atletas oriundos destas nações eslavas apenas poderão concorrer sem qualquer alusão verbal ou simbólica a estas. E se não há como negar o envolvimento de ambos países nesse conflito, estão longe de serem os únicos implicados em campanhas bélicas em curso. Talvez o caso mais notório, pelo alto custo humano, seja o de Israel e a atual invasão de Gaza. O COI não apenas não considerou qualquer sanção, como declarou ambos casos incomparáveis e advertiu sobre qualquer discriminação contra os atletas israelitas. Aliás, enfatizou sobre estes não serem responsáveis pelas ações do seu governo. Mas esta dupla moral não tem nada de original historicamente, como também não é novo o protagonismo da política nas Olimpíadas. Já o êxito da primeira edição de 1896 em Atenas serviu ao governo grego para dissimular as más condições económicas do povo heleno e ainda constituiu uma plataforma para a reivindicação da ilha de Creta, na altura sob administração otomana. Este clima nacionalista foi o prelúdio para a Guerra Greco-Turca do ano seguinte e primeiro episódio de uma série de desavenças militares entre estas duas nações pela fixação da fronteira. Porém, será nos Jogos de Londres em 1908, os primeiros onde se consolida a participação através dos comités olímpicos nacionais, quando surjam com força as tensões políticas próprias da altura. Ligados à exposição franco-britânica do mesmo ano, evento que pretendia suavizar as relações entre ambos estados face a emergência da Alemanha como potência, o próprio comité anfitrião teve de lidar com a possibilidade de boicote por parte dos atletas irlandeses, fato que provocou que passasse a denominar-se como Comité Olímpico da Grã-Bretanha e a Irlanda. Os atletas irlandeses tinham o caso dos seus congéneres boémios e húngaros que concorriam à margem da Áustria; ou o dos finlandeses, que preferiram acudir sem bandeira alguma antes que fazê-lo sob a do império czarista. Diante das crescentes pressões de Alemanha e Áustria-Hungria para limitar a participação aos estados consolidados, o barão de Coubertain daria uma solução para os seguintes Jogos: a Boémia, a Hungria ou a Finlândia poderiam competir de maneira independente, mas deviam ir sob bandeira dos impérios nos que se achavam incluídas. Depois dos Jogos de Praga, a Internacional Desportiva de Lucerna, ligada à social-democracia, impulsará várias Olimpíadas Operárias Mas a questão irlandesa não foi apenas um assunto “interno” da delegação local, senão que teve o seu eco na hostilidade entre a Grã-Bretanha e os Estados Unidos. Muitos atletas desta última delegação eram imigrantes recentes da ilha esmeralda. Além disso, eram de origem operária e desportistas profissionais, em contaste com o amadorismo e a origem privilegiada dos participantes pelo Reino Unido. O clímax destas desavenças foi a negativa do porta-bandeira dos EUA, Ralph Rose, a inclinar o seu estandarte diante da presença do rei Eduardo VII; gesto considerado extremamente desrespeitoso. A Primeira Guerra Mundial supôs o cancelamento dos Jogos de Berlim (1916) e o estabelecimento de uma parêntese olímpica de 12 anos. Como o convite às delegações nacionais dependia dos países anfitriões, a sua recuperação com as edições de Antuérpia (1920) e Paris (1924) supôs a exclusão na prática dos países vencidos na conflagração, muito especialmente da Alemanha. O descrédito dos ideais olímpicos propiciou o afloramento de alternativas como a projetada Olimpíada do Norte em Christiania (Dinamarca). Também as organizações da classe trabalhadora propuseram um outro caminho em confrontação com as “Olimpíadas burguesas”. Depois dos Jogos de Praga (1921), a Internacional Desportiva de Lucerna, ligada à social-democracia, impulsará várias Olimpíadas Operárias destacando a de Viena (1931), que chegou a congregar mais desportistas e espetadores que a Olimpíada “oficial” de Los Angeles (1932). O COI teve de lidar com a existência de duas Alemanhas, duas Chinas e duas Coreias Pela sua parte, a Sportintern, apoiada pela Terceira Internacional, impulsaram as Spartakiadas comunistas. Ambas organizações aproximarão-se pela política das frentes populares e projetarão uma Olimpíada em Barcelona para 1936 que não se poderá realizar pelo início da guerra. Precisamente, a capital catalã fora descartada pelo COI como sede olímpica em favor do Berlim do Terceiro Reich devido à proclamação da Segunda República. O último episódio de olimpismo operário serão os Jogos de Antuérpia de 1937. Depois da Segunda Guerra Mundial, a URSS ingressa no COI entendendo que o eventual domínio do medalheiro seria uma excelente promoção internacional; algo que aconteceu nas décadas seguintes. Mas isto também implicava a incorporação das dinâmicas da Guerra Fria. O COI teve de lidar com a existência de duas Alemanhas, duas Chinas e duas Coreias. O reconhecimento da República Democrática Alemã em 1955 foi sob a condição de concorrer junto com os atletas germanos ocidentais, algo que acontecerá durante as próximas três olimpíadas. Mas as tensões entre ambos os comités provocarão a sua separação em 1968. Alemanha não volverá participar com uma só equipa até Barcelona 92, depois da sua reunificação. A solução alemã não parecia aplicável ao contexto chinês, resultado de uma onerosa guerra civil. Tanto a República Popular como Taiwan rechaçavam uma equipa unificada e reivindicavam a oficialidade exclusiva da representação da China. Depois de participar nas olimpíadas de 1952, a República Popular da China não regressará às competições até Los Angeles 1984, paradoxalmente um evento boicotado por vários países do bloco socialista em resposta à ausência anterior em Moscovo 1980 de diversos rivais capitalistas em protesto pela intervenção da URSS no Afeganistão. A República Popular Democrática da Coreia foi aceite no COI em 1957 também sob condição de ir numa equipa unificada com a sua homóloga do sul mas, neste caso, fora esta última quem acabou por rechaçar estes intentos. A participação da Coreia setentrional nos Jogos Olímpicos de verão começou em Munique 74 e véu-se sacudida por vários boicotes e exclusões. Descartou concorrer em Los Angeles 84 e Seul 88 por motivos políticos, e também em Tóquio 2020 por causas sanitárias. Esta última ausência provocou a sua exclusão dos Jogos Olímpicos de inverno de Pequim. Na atualidade, as duas Coreias continuam a concorrer por separado, mas graças à Política Raio de Sol, marcharam simbolicamente unidas nos Jogos de 2000, 2004 e 2008. O desporto é um fato social que sintetiza as contradições à sua volta Mas a Coreia do Norte não foi o único país banido das Olimpíadas. Em Tóquio 1964, a Indonésia foi excluída por não enviar visados para os atletas de Taiwan e Israel para os Jogos Asiáticos de 1962 em Jacarta. A presença de Israel já motivara o boicote do Egito, a Camboja e o Líbano em Melbourne 1956 pela Segunda Guerra Árabe-Israelita. Porém, o incidente mais grave foi o de Munique 72, onde uma operação do grupo armado Setembro Negro acabou com a vida 11 membros da equipa olímpica israelita, um agente alemão e cinco militantes palestinos. Outro país impedido de participar foi a Sul-África do apartheid desde 1964. Foi mercê a uma importante campanha de solidariedade que quase provoca o boicote dos estados africanos se não se mantinha esta política para as olimpíadas de 1968. Um dos principais focos de este ativismo foram os EUA, onde uma vez conseguida a exclusão da Sul-África, o Projeto Olímpico pelos Direitos Humanos criticava a imagem de harmonia racial que o seu país projetava através do desporto. Esta posição concluiria com a protesta icónica dos corredores Tommie Smith e John Carlos. O desporto é um fato social que sintetiza as contradições à sua volta. O olimpismo não é alheio a isto, até pelas externalidades que provoca sistematicamente nas cidades hóspedes: deslocamento de populações para a construção das infraestruturas, endurecimento das condições de vida pelo aumentos dos preços ou severas restrições dos direitos civis, do que o massacre de Tlatelolco talvez seja o exemplo mais trágico.