Revolução: Floresta, território e crise climática nos 50 anos do 25 de Abril

Nos dias que antecedem o aniversário, onze ativistas climáticos do coletivo anticapitalista Climáximo serão julgados pelas ações diretas cujo objetivo é a interromper a normalidade e construir um movimento que trave a guerra declarada por Governos e empresas contra a sociedade. Esta guerra é a decisão metódica e reiterada de expandir emissões, manter fontes emissoras em funcionamento e condenar as gerações atuais e futuras aos piores cenários da crise climática, que vemos materializarem-se frente aos nossos olhos. A celebração este ano tem uma componente extra: a ascensão meteórica do projeto de extrema-direita Chega em Portugal, projeto que faz parte do esforço internacional de extrema-direita no hemisfério ocidental. Este esforço corresponde à crise existencial do capitalismo global, que começa a ruir sob o peso da crise climática, que se transforma em crise de custo de vida, em crise de acesso a recursos, em crise migratória, em crise da comunicação e de imprensa, em crise fundamental da democracia burguesa. A crise climática já produz escassez em grande escala, que arderá sob as frágeis fundações sociais que cinquenta anos de neoliberalismo minaram. A confiança nas instituições é mais baixa do que nunca, e a extrema-direita tem usado este cenário para avançar um programa arcaico de regresso a um passado que nunca existiu como alternativa a um mundo de dúvidas e desconfiança A revolução em Portugal foi feita em contra-ciclo histórico, contra uma elite decrépita que matava uma geração inteira numa guerra para fingir que Portugal ainda era o que nunca tinha sido: um glorioso império. Os países europeus começavam a levar as primeiras punhaladas do neoliberalismo quando Portugal construiu a toda a velocidade o Estado Social que tentava curar as feridas e mutilações sociais deixadas por 48 anos de fascismo arcaico. Em poucos anos constituíram-se a saúde pública, a educação pública, nacionalizaram-se sectores essenciais, mas pouco depois a onda histórica apanhou-nos. Na área de ambiente, os programas eram pouco avançados, mas ainda assim muito do que se avançou hoje já está amputado e desmantelado. Tal como outras empresas, a The Navigator Company era uma empresa privada durante o fascismo que foi nacionalizada na revolução, foi fortemente engordada com dinheiros públicos durante trinta anos e finalmente privatizada em 2004. A história da floresta em Portugal é uma história de extrativismo e colonialismo. A política das Descobertas levou à destruição de boa parte das florestas de carvalhos entre o Douro e o Tejo, para construir embarcações. Para construir os cerca de 2.500 navios que serviram para criar o império colonial e manter um circuito comercial constante de matérias-primas e escravos terão sido necessários mais de 5 milhões de árvores. A população cresceu mais 4 milhões de habitantes entre 1636 e 1900, aumentando a pressão sobre os recursos, em particular sobre a floresta, levando à expansão da área agrícola para produção de alimentos e ao corte de árvores para múltiplos usos, para todo o tipo de construção, para cozinhar e, mais tarde, para a construção de caminhos-de-ferro. O acesso a madeiras abundantes das colónias em África e no Brasil deu origem a um declínio da área florestada. Com a vitória de liberais sobre absolutistas na Guerra Civil, foram criados os Serviços Florestais e houve uma expansão das florestas públicas, com o Estado a tomar posse das propriedades florestais de ordens religiosas e aristocratas derrotados, mantendo a herança do fim do feudalismo, distribuindo a Norte as áreas pela população e consolidando o minifúndio que se estendia entre Portugal, Galiza e Astúrias. Em 1875, a área era menos de 7% do território nacional, provavelmente a menor área florestal nos últimos milénios. As matas públicas cresceram da transição da monarquia para a República e depois para o fascismo. No entanto, neste último período a plantação e orientação foi entregue nas mãos de privados pagos com dinheiros públicos: através do Plano de Fomento em 1954, da Comissão de Fomento Suberícola em 1956, do Fundo de Fomento Florestal em 1963, que até aos anos 80 forneceu gratuitamente 97 milhões de árvores e que florestou 242.954 hectares de terra, pelo Projecto Florestal Português, do Banco Mundial e implementado em parceria com a Portucel (percursora da Navigator), que levou à florestação de 131.908 hectares, boa parte dos quais com eucalipto. A entrada na União Europeia criou o Programa de Acção Floresta, o Plano de Desenvolvimento Florestal (1994 -1999) e os quadros comunitários. A área florestal máxima atingida em Portugal nos últimos séculos ocorreu perto de 1995, a seguir ao pico de área máxima de pinhal. O país com maior área de eucaliptal relativo do mundo Nos últimos 25 anos, Portugal perdeu área florestal a um ritmo de 10.000 hectares por ano. Entre 1990 e 2015, a FAO e o Eurostat registam uma desflorestação superior a 254 mil hectares. Esta desflorestação foi acompanhada por um constante aumento na área de plantações de eucalipto: há mais 300 mil hectares de eucalipto nos últimos vinte e cinco anos. E assim Portugal tornou-se o país com maior área de eucaliptal relativo do mundo. O Centro e Norte foi direccionado para a a rolaria de eucalipto para abastecer a indústria das celuloses, dominada pelo grupo The Navigator Company (ex -Portucel Soporcel) e pelo grupo Altri (Caima, Celtejo, Celbi e AltriFlorestal). Na base do comércio estão milhões de pequenas explorações e pequenos proprietários e muitas terras abandonadas (até 20% do território). Até à década de 1970, os incêndios florestais, não eram uma preocupação que dominasse o planeamento territorial (no período 1968 -1975 a média de área ardida eram 10 mil hectares por ano, com 1974). Além da mudança da composição florestal que se verificou nas últimas décadas, a acumulação de contínuos de combustível altamente inflamável passou a ser uma constante, pela redução do pastoreio, pelo abandono em massa do meio rural e da agricultura de pequena escala e pela invasão do eucalipto. Portugal é o país da Europa com menor área de floresta pública, e o Estado é proprietário de apenas 2% da área florestal nacional. Portugal é frequentemente o país com os maiores incêndios florestais do Mediterrâneo, sendo acompanhado a norte pelas zonas da Galiza e das Astúrias, onde os eucaliptos também dominam a paisagem. Após o 25 de Abril o povo impôs o fim do império colonial português, e acabaram as zonas de sacrifício para extração de recursos e matéria-prima para Portugal. Pouco após o período revolucionário, o capitalismo global impôs-se ao Portugal de Abril, impôs-lhe tornar-se ele próprio zona de sacrifício e o eucaliptal foi uma ferramenta essencial dessa política. Não é de estranhar pois que a intervenção da troika em 2011-2014 tenha imposto também a liberalização da plantação de eucaliptos, nem que a Navigator Company se tenha deslocado a Moçambique para plantar aí mais de 200 mil hectares de eucaliptal, para importar depois para Portugal. O ciclo continuaria, não fosse o facto de o capitalismo hoje estar a atingir todos os limites biogeofísicos do planeta. A intensificação da exploração florestal conjugada com o abandono rural promovido pela cultura do eucaliptal e pela miséria rural criada pelo capitalismo global criaram não só zonas de sacrifício como zonas de incêndios sem paralelo histórico, como aconteceu em Portugal em 2003, 2005 e 2017, e que apenas abrandam quando a destruição da biomassa é tal que demora anos a haver material para arder de novo. Esta é a antecâmara do deserto ibérico. O eucaliptal é provavelmente a maior ameaça à viabilidade da zona ocidental da península Ibérica.O ímpeto revolucionário do 25 de Abril não reverteu ou travou a pulsão de morte capitalista. Uma profunda transformação da paisagem Os ativistas que vão ser julgados na véspera do aniversário do revolução, têm no entanto uma proposta programática radical para a floresta portuguesa. Ela colide diretamente com os interesses privados da indústria de morte que se apresenta como "verde e sustentável": a indústria do papel e da celulose. O primeiro passo é realizar o cadastro florestal para conhecer o território e deixar de o ter totalmente exposto à vontade da indústria privada, preparando uma profunda transformação da paisagem. Esta paisagem tem de preparar os cenários de alterações climáticas a que estamos expostos, promovendo o fim dos incêndios, em vez da sua proliferação com armadilhas de eucaliptais e pinhais abandonados. É preciso gente para cuidar do rural, primeiros dos quais os guardas, vigilantes da natureza e sapadores profissionais que possam travar incêndios muito antes de eles acontecerem. É preciso então converter as áreas de eucalipto e pinhal abandonado em florestas e bosques de espécies autóctones em regime de policultura, criar uma floresta nativa e resiliente que possa preservar solos e água, retirando 700 mil hectares de eucaliptal, 70% do milhão atualmente existente. Este seria um passo de entre muitos, do plano de paz que acabe com a guerra levada a cabo pelas elites globais e nacionais do capitalismo contra o conjunto da sociedade "25 de Abril sempre, fascismo nunca mais", é a palavra de ordem mais arremessada frente ao autoritarismo e ameaças de fascismo de hoje. Seria inspirador se essa palavra fosse mais aspiração do que lembrança, quando em vários momentos é apenas parte de uma cerimónia em vez de anseio coletivo de futuro. Nos 50 anos da revolução que derrubou a ditadura mais longa da Europa, o medo do futuro domina os que se reivindicam da tradição revolucionária. Em 2024, muito mais do que defender o que aconteceu há cinquenta anos, precisamos a imaginação e a coragem de nos lançarmos à conquista de muito mais do que o que foi ganho em Abril.