Para entender o Feminismo em África

rainha Nzinga

Há um distanciamento ideológico dos africanos face ao Feminismo devido a uma falsa ideia de tradição e um desconhecimento da nossa História pré-colonial.

 

Sempre fico um pouco triste quando converso com pessoas e percebo o seu desconforto em falar de feminismo ou assumirem-se feministas, porque nós já tínhamos na nossa vivência formas de estar fora do padrão patriarcal.

A arrogância das feministas ocidentais ao debaterem África, assumindo as suas realidades como “certas” ou como “modelos” não dá espaço para o estudo dos nossos feminismos, da nossa filosofia africana tradicional.

As feministas ocidentais sempre falaram em nome de todas as mulheres, como se conhecessem as experiências de todas as mulheres, ou pior, como se as suas experiências fossem universais.

Na verdade as relações de género diferem bastante, daí a necessidade de interseccionalidade. Não existe uma única experiência de mulher, mas sim várias.

A arrogância das feministas ocidentais ao debaterem África, assumindo as suas realidades como “certas” ou como “modelos” não dá espaço para o estudo dos nossos feminismos

Embora de forma generalizada possamos todas assumir que vivemos numa sociedade que privilegia o masculino, há que reconhecer as nossas diferenças. Uma das grandes diferenças é a exploração da sexualidade como meio para alcançar o domínio e o poder.

Por exemplo, nas mulheres Makhua os ritos de iniciação e técnicas corporais como o alongamento dos lábios vaginais e o pompoarismo, têm como fins eróticos e estéticos que visavam a maximização do prazer da mulher. Através dos ritos de iniciação era possível passar este papel da sedução e do desejo como ferramentas para fazer política, tanto a nível intra-género, em que as mulheres mais velhas mostravam a sua autoridade pelas mais novas e também a nível inter-género, ao usar a arte do sexo para dominar o masculino.

No feminismo ocidental, pelo papel da Igreja e os conceitos puritanos de moral e de finalidade do sexo, houve uma demonização do sexo e por isso os poderes sexuais são um ponto até hoje de muito debate e polémica. A sexualidade da mulher deve ser reprimida para ser aceite, assim, uma mulher que reconhece, assume e faz uso do seu poder sexual é vista como devassa e é símbolo da degradação moral da sociedade.

Já existiam feministas aqui, antes de chamarmos o Feminismo por esse nome

Neste caso, o feminismo ocidental ofusca o sexo e o erótico numa nuvem de culpa, medo, vergonha e desprezo que impede uma visão saudável do sexo como ferramenta para fazer política. Daí o falso moralismo e cinismo em torno do trabalho sexual (pornografia; prostituição; etc), visto que é um tema tabu cujas opiniões continuam polarizadas no que diz respeito ao reconhecimento da sua existência e da sua legitimidade.

Outro elemento diferenciador é a existência de sociedades matrilineares. No Norte de Moçambique, especialmente no período pré-colonial, era comum a linhagem/ descendência ser contada pelo lado materno. Eram os homens que abandonavam as suas zonas de origem e passavam a viver com a família da esposa após o matrimónio. Os filhos do casal também levavam o apelido do tio materno e a mulher assumia a liderança na sua comunidade.

Adicionalmente, nas culturas matrinineares, nomeadamente Yao e Makhua, eram (e ainda são) praticados os ritos de iniciação tanto para os meninos como para as meninas, como ritual de passagem da infância à fase adulta. E nestes ritos era onde os conceitos de masculinidade e feminilidade eram passados.

Para as meninas, era um espaço de autonomia onde podiam partilhar as suas dúvidas e inquietações e ouvir das mulheres mais velhas conselhos e informações sobre o seu corpo, gestão do lar, cuidados de saúde; educação dos filhos, etc.

Podemos concluir que os processos de modernização podem provocar tanta ou maior exclusão que os padrões tradicionais

Esses momentos de partilha e sororidade entre mulheres, em privado, longe dos olhares dos homens, eram inexistentes no contexto ocidental. Os ritos de iniciação permitiam incutir na menina um sentido forte de pertença e poder, desde cedo, domando-lhe de ferramentas para liderar a sua família e a sua aldeia.

Havia portanto um poder feminino. Nós tínhamos sociedades lideradas por mulheres em que cada um – homem e mulher – tinha os papéis bem definidos, sem necessariamente haver submissão por parte da mulher (ou sequer do homem).

É importante enquadrar os paradigmas africanos dentro de um Feminismo que englobe questões específicas das realidades locais. Fará sentido um debate em torno da liberdade da mulher realizar trabalho remunerado, por exemplo? Poderemos encarar isso uma parte central do feminismo em África?

A mulher negra sempre pertenceu à força de trabalho. Aliás, é esta a grande tese de Sojourner Truth no seu discurso “E não sou uma mulher?” (Ain’t I a woman, originalmente), em 1851 na Convenção dos Direitos das Mulheres nos EUA, quando ainda existia a escravatura e as mulheres brancas lutavam para serem vistas como seres humanos capazes de trabalhar e assumir responsabilidades.

Em África, e mais especificamente em Moçambique, o trabalho no campo sempre foi feminino por excelência. Encarava-se a mulher como criadora da vida, e por isso, reprodutora por natureza. Nesse sentido, o seu domínio se estendia também à fertilidade da terra. Por isso a sua participação na produção agrícola era central, não só por uma questão económica, mas também pelo sentido espiritual.

Com a instauração do colonialismo e de um sistema económico monetarizado houve uma desorganização dos modelos tradicionais de autoridade, de género e de organização política

Com a instauração do colonialismo e de um sistema económico monetarizado houve uma desorganização dos modelos tradicionais de autoridade, de género e de organização política. É importante lembrar também que a abertura do mercado de trabalho transnacional nas minas da África do Sul levou à saída de muitos homens jovens, deixando as mulheres sozinhas nas aldeias onde tiveram de assumir papéis tradicionalmente masculinos – mesmo nas sociedades patrilineares.

Os processos de descolonização, por sua vez, pela influência das teorias ocidentais também não permitiram o resgate dos valores tradicionais ou sequer o seu entendimento, pelo contrário, em muitos casos, como em Moçambique o sistema socialista gritou bem alto “abaixo o lobolo! abaixo ao feudalismo! abaixo aos ritos de iniciação!”, esquecendo o papel estruturante destes elementos como a base de identidades moçambicanas.

Numa tentativa de unificação e consolidação de uma Nação, paradoxalmente, ignoraram-se estilos de vida tradicionalmente moçambicanos. Para os arquitectos da nação, o poder masculino representava a modernidade e o progresso, enquanto formas não ocidentais e e/ou não patrilineares representavam o atraso.

Deste modo, em benefício do projecto nacional estabeleceu-se uma ordem patriarcal na qual o homem seria inquestionavelmente o chefe da família, provedor e autoridade máxima, apagando por completo formas alternativas de estrutura social, em prejuízo das mulheres.

Podemos concluir que os processos de modernização podem provocar tanta ou maior exclusão que os padrões tradicionais. Encaram-se as estruturas sociais pré-modernas como fonte de todo atraso e opressão e a modernização como intrinsecamente libertadora, o que não é verdade. Repito: a modernização, ou, por outras palavras, a “ocidentalização” não é necessariamente libertadora.

As dissemetrias de género e as próprias categorias de género e de sexualidade são fruto dessa ocidentalização e em muitos casos não se adequam às tradições africanas, como no caso da cultura Igbo (Nigéria).

Já existiam feministas aqui, antes de chamarmos o Feminismo por esse nome. Perguntem só à Rainha Nzinga do reino de Ndongo; à Huda Shaarawi do Egipto; à Funmilayo Anikulapo-Kuti da Nigéria; e a tantas, tantas outras.

E nós ainda estamos aqui.