Ornitologia humana

Lembro os quadrinhos de Mafalda em que pedia por um aparato de TV e o pai escusava-se no dano à imaginação que este podia provocar. E a Mafalda a duvidar da sua fantasia em quanto via crateras da lua nas fochancas caminho da escola. Não há TV neste Patio de Luces que ideia a Érica Esmorís, nem gameboy nem playstation nem instagrams ou tiktok. Ou sim, só que a TV são as janelas de um prédio e as películas, as estórias que ela inventa para cada uma das habitantes do edifício. A estrutura do livro é singela: há cinco andares com quatro seneiras, quatro vidas, quatro capítulos (não só). Método científico: observar, formular hipóteses, comprovar. Observação não de aves, mas de humanas. Lea tem que passar as tardes da sexta na casa do avô, amedado perante a extinção da sua espécie, a dos porteiros de prédios. O velho proíbe terminantemente à menina fazer-se visível para a vizinhança, para não dar álibi ao temido despedimento. Não há como proibir para picar a borbulha da obediência. E Lea entretém-se no pátio de luzes, espaço vedado, imaginando como é que será as pessoas que habitam os andares. Patio de luces é unha obra que nos fala de preconceitos e primeiras impressões. Das peças de roupa que penduram (ou não) das cordas, a rapariga decide quais as suas amas: uma viúva, um caçador, uma moça rica e festeira, um fantasma. Decide também se gosta ou não dessas pessoas, se lhe caem bem ou mal. E atua em consequência. Cada capítulo é o divertido desmentido dessas primeiras impressões da nena, que acaba por reconhecer os seus erros e por reformular as suas hipóteses de observação. A voz narradora, da própria meninha, está bem conseguida, em especial nos diálogos em que ela continua a insistir nas suas primeiras impressões apesar das evidências. Consegue, em muitas ocasiões, provocar sorrisos nos nossos olhos, polas reações e ocorrências da Lea. Do que mais gostamos é da posta em valor da curiosidade. Lea é uma criança entremetida e sabichona, perguntadeira. Poderiamos aguardar uma história com moral final, pandora que abre ánforas de males horrendos. Porém, a autora opta por outorgar resultados felizes às fantasias e desobediências da cativa, que não cai dos céus, icarinha, mas consegue que no segundo sempre haja festa as sextas de tarde. Patio de luces é obra para primeiras leitoras e para todas as que precisemos lembrar que a fantasia só pede tranquilidade e dous olhos para voar. Como passarinho que observamos, seja xílgaro, seja reisenhor.