50 anos de abril: mergulhar no 'Venham mais cinco'

Do Zeca Afonso já nos ocupamos noutro artigo, quando o livro José Afonso. Todas as canções foi reeditado, e gostamos de interpretar nas Portas Ártabras da Corunha, em 2021, algumas composições do saudoso artista. Agora foi no Circo de Artesãos, com mais amplo repertório, para celebrar no próprio dia 25 os 50 anos de Abril, essa revolução dos cravos que comoveu o mundo. E ainda que também incluímos canções de Baladas de Coimbra (1963), Canto moço (1970), Cantigas do Maio (1971), Eu vou ser como a toupeira (1972) e mesmo duas do Fausto (Madrugada dos trapeiros, 1977), e apesar ainda do valor simbólico universal de "Grândola" (Cantigas do Maio), quero eu relembrar as de Venham mais cinco (1973), o último dos discos de Zeca gravado e publicado, como diz o Gonçalo Frota, nos interstícios da ditadura. O disco chegou a nós no ano 75, ou talvez antes. Não parávamos de lhe dar voltas, pois tinha um algo singular, com aquela voz potente mas brilhante e sempre matizada, num registo doce que emergia de uma base rítmica e harmónica cuja modernidade estava baseada, em parte, nas formas africanas que o autor quisera introduzir de maneira propositada. Não era um cantautor vulgar, nem na letra nem na música. Era um músico de enorme capacidade intiuitiva e criadora, que à sua vez se soubo rodear de excelentes colaboradores para os seus projetos. Como o tempo é traidor, já não sei se nos chegou antes o single extraído do mesmo LP, editado no 74, que tinha os temas "Venham mais cinco" e "Que amor não me engana", ou se foi o contrário. Gravado em Paris no estúdio Aquarium em outubro de 1973, foi o disco que contou com o maior número de músicos, dezaoito, e, como fora em Cantigas do Maio, com a colaboração de José Mário Branco, também nos arranjos, todo num tempo reduzido, tendo que "improvisar" mesmo na própria semana de gravação. Porém, queria salientar certas intervenções especiais, uma delas a do guitarrista brasileiro Yório da Costa Gonçalves –de boa técnica e capaz de imaginar variadas possibilidades harmónicas–, que o Zeca conhece pouco antes de este ser detido pola polícia e ser isolado vinte e um dias na prisão de Caxias onde é várias vezes interrogado. Alá escreve "Era um redondo vocábulo", essa beleza surrealista que o Yório vai interpretar magistralmente no disco. Este tema, como "Nefretiti não tinha papeiras" e outros, tem uma linguagem onírica, fondamente enigmática, sem que seja contraditória com o discurso de José Afonso, cuja arte devia provocar a agitação popular. A outra intervenção anedótica, naqueles dias de Paris, foi a de Janine de Waleyne, uma das fundadoras de Les Blue Stars de France, alta, loira e de olhos azuis, que foi chamada para fazer as onomatopeias africanas da canção "Venham mais cinco" quando o Zeca pedia "uma preta" que as interpretasse. Conta o Gonçalo Frota que Waleyne apenas precisou meia hora para praticar e interpretar magnificamente essas vozes que José Afonso achou uma delícia.