Françoise Hardy: O mito mais puro e natural no pop dos sessenta

Nos anos sessenta todos estudávamos francês. Já o dixo Aute em "Las cuatro y diez". Era iniciar o bacharelato com dez anos e no papel da matrícula, onde punha "idioma" havia que pôr francês, pois ainda que à gente nova lhe pareça estranho, o inglês tardaria uns anos em se introduzir como idioma no ensino. O francês era a língua moderna, que na Espanha casposa do franquismo nos fazia sonhar com o amor e a liberdade: "Faites l'amour, pas la guerre". Nos livros e nas aulas estava a gramática, o léxico e a pronúncia do professor, mas era os sábados quando nos jogos de basquetebol soava nos altofalantes do pátio o "Poupée de cire, poupée de son" e "Un prince charmant" na voz de Frances Gall, e na de Françoise Hardy "Le temps de l'amour" e o mítico "Tous les garçons et les filles". Agora Françoise Hardy foi-se de nós. Levava dous anos a pedir a eutanásia que lhe foi negada, e sabíamos que era cousa de tempo. Foi-se e deixou-nos aquele vídeo incipiente, ela a caminhar polas ruas, beleza primitiva de imagem e som, que só pudemos ver algo mais tarde com a chegada da televisão. Os da minha geração, dez anos mais novos, estávamos namorados dela, um amor perdurável acaso sem final. Os ventos clandestinos da Europa chegavam com imagens simbólicas proibitivas. Brigitte Bardot era o sexo, como a Jane Birkin de "Je t'aime... moi non plus". Gigliola Cinquetti, com "Non ho l'età", era para mim a inocência. Mas Françoise Hardy era o amor. "Tous les garçons et les filles de mon âge / se promènent dans la rue deux par deux...", em Lá Maior, marcando o swing em tempo subdividido a três, uma voz nova, bem afinada e sensual, quase sem esforço nas cadências melódicas, a doçura na olhada, os lábios e os cabelos. A beleza perfeita. Foi intérprete, compositora e mesmo escritora, e tivo um enorme sucesso desde "Tous les garçons...". Era 1962 e tinha dezaoito anos. Eu soubem dela ao pouco por uma prima algo maior, já adolescente, que passara um tempo na nossa casa. Daquela podias ouvir a música de duas maneiras: ou pola rádio ou de boca em boca, e foi que eu ouvim por primeira vez "Tous les garçons..." de lábios da minha prima, que era alegre e cantava as canções de moda que eu depois aprendia. Mas se falei do vídeo andando polas ruas, também se pode ver aquele maravilhoso em que ela canta com quatro músicos (guitarra, baixo, órgao e bateria) na televisão holandesa em 1963, ou aqueloutro de 1962, recolhido no programa France Culture, que é um verdadeiro documento, pois canta a canção da forma mais espida, em Sol Maior com quatro acordes, só acompanhando-se da guitarra e levando o ritmo com a mão no que poderíamos chamar a essência do pop. Todos os moços e moças da minha idade passeiam pola rua de dous em dous..., mas eu vou sozinha polas ruas, com a alma em pena, sem ninguém que me ame. São os versos que ela escreve influenciados acaso por Alfred de Musset, o poeta romântico que amara George Sand.