A cooperação entre Portugal e a Galiza: Fazer o que ainda não foi feito

Como se tivessem permanecido todos aqueles anos pacientemente à espera de uma oportunidade, as relações entre a Galiza e o Norte de Portugal começaram rapidamente a ser oficializadas. Logo em 1988 começaram os primeiros diálogos entre a Xunta da Galiza e a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N). Desde 1991 criaram-se várias experiências de cooperação transfronteiriça que fazem deste um território de referência a nível europeu. Muito mudou desde esses primeiros encontros, mas há ainda muito por fazer. Hoje falamos da existência de uma Eurorregião da Galiza e Norte de Portugal. Proliferam estruturas de colaboração entre entidades públicas, associações e universidades. Há eurocidades que partilham equipamentos públicos, e a mobilidade intensificou-se. Há uma maior integração económica e as interações sociais materializam-se em prémios e ofertas culturais conjuntas. O convívio é facilitado por eventos artísticos e desportivos transfronteiriços. Construíram-se pontes e autoestradas que unem os dois territórios. É pela fronteira com a Galiza que passa a maioria dos veículos entre Portugal e Espanha. Apesar dos avanços, estamos hoje numa fase crucial da integração eurorregional. Para manter a sua posição de vanguarda a nível europeu, a Galiza e o Norte de Portugal precisam de dar um passo em frente. Para tal é necessário colmatar a falta de infraestruturas e serviços públicos partilhados em âmbitos como a mobilidade, a proteção civil e a formação. Resta saber se os respetivos Estados estão interessados em facilitar as condições para tal. É necessário colmatar a falta de infraestru-turas e serviços públicos partilhados em âmbitos como a mobilidade, a proteção civil e a formação A eterna promessa da ferrovia A primeira vez que fiz a viagem de comboio entre Vigo e Nine (Braga) foi em 2013. Tive a sensação de que para além de uma viagem no espaço estava a viajar no tempo. O comboio era velho, lento e ruidoso. Tive de comprar dois bilhetes. Comprei à Renfe o bilhete entre Vigo e Tui e, assim que o comboio atravessou a fronteira, comprei outro entre Valença e Nine à Comboios de Portugal. A última vez que utilizei este comboio, o chamado Celta, foi em 2020. Já não precisei de comprar dois bilhetes, mas o serviço continuava lento e antiquado. Das inúmeras vezes que me movo entre terras portuguesas e galegas, não considero o Celta como opção. Já perdi a conta ao número de vezes que ouvi falar do avanço eminente da Alta Velocidade entre Porto e Vigo. É uma promessa repetida desde 1998. A mais recente começou em 2020 quando o então primeiro-ministro português, António Costa, anunciou a construção da ligação ferroviária de alta velocidade entre Lisboa e Porto. A ambiciosa estratégia ferroviária portuguesa pretendia reforçar a faixa atlântica e, para tal, seria necessário prolongar a ligação a Vigo. Referiu ainda que entre Portugal e Espanha esta seria a ligação prioritária devido às fortes relações sociais, económicas e culturais entre os dois lados da fronteira. O então ministro das infraestruturas, referiu que "se no passado, a obsessão era a ligação entre Lisboa e Madrid", a "obsessão" do seu Governo "é ligar Lisboa ao Porto e o Porto a Vigo". A obra estaria concluída antes de 2040 e teria vias disponíveis para mercadorias e passageiros. Esta intenção esbarrou várias vezes na fronteira já que Pedro Sanchéz evitou comprometer-se a fazer a obra a norte do Minho. No entanto, o ano passado foi anunciada a adjudicação de um estudo para este troço ferroviário. Não sabemos, ainda assim, que impactos terá neste domínio a recente mudança de Governo em Portugal. De acordo com os dados oficiais, em 2019 registou-se uma média diária de 38.634 veículos ligeiros e pesados a passar o rio Minho. Muitos destes movimentos poderiam ser garantidos por um serviço de ferrovia que encurtasse o tempo e aumentasse a comodidade das viagens, além de diminuir a pegada climática da mobilidade transfronteiriça. Este é um passo fundamental para uma Eurorregião mais integrada e alinhada com os princípios da transição climática justa e inclusiva. A cooperação transfronteiriça na melhoria da qualidade de vida Uma das críticas mais apontadas às estruturas de cooperação transfronteiriça entre a Galiza e o Norte de Portugal é o facto de estas serem projetadas pelas elites e de estarem afastadas da população e do seu quotidiano. Posicionar estas estruturas na prestação de serviços públicos que garantam a melhoria da qualidade da vida das pessoas permitiria aproximá-las da cidadania. Isto é especialmente importante para os espaços afastados dos grandes centros de poder como são os territórios fronteiriços, onde o Estado Social tem mais dificuldade em chegar. Melhorar e ampliar os denominados serviços públicos transfronteiriços pode ser a resposta. Por definição, estes são serviços prestados por autoridades de ambos os lados da fronteira, partindo da utilização partilhada de infraestruturas ou da criação de outras de raiz. Dentro da União Europeia (UE) encontramos serviços públicos que rompem fronteiras para responder de forma mais eficaz às necessidades da população. Por exemplo, em Girona, existe o hospital da Cerdeña que cobre 32.019 habitantes catalães e franceses e é gerido de forma conjunta pelos respetivos serviços de saúde. O Schengen Lyceum, localizado no município alemão de Perl, é uma escola transfronteiriça que oferece um currículo que junta os sistemas escolares do Luxemburgo e da Alemanha, muito valorizado pela população. Há também o caso da cidade austríaca de Großgmain cujas águas residuais são tratadas do outro lado da fronteira, na estação da cidade alemã de Bayerisch Gmain. Também entre a Galiza e o Norte de Portugal há experiências relevantes neste domínio. O parque transfronteiriço Gerês-Xurés é um exemplo internacional de cooperação transfronteiriça nos domínios cultural e da conservação da biodiversidade. As eurocidades de Chaves-Verín, Cerveira-Tomiño, Valença-Tui e Monção-Salvaterra têm lançado propostas promissoras de integração de serviços nas áreas da mobilidade, cidadania, assistência sanitária e educação. Mas muitas destas propostas ainda não saíram do papel devido aos obstáculos legais impostos pelos Estados. As cimeiras anuais entre Portugal e Espanha têm gerado projetos de relevo. Em 2020 foi prometida a criação de um "112" transfronteiriço, proposta a coordenação dos serviços para combater a violência contra as mulheres, e sugeridas muitas outras ações nos campos da educação, segurança, economia e cultura. Muitas não deixaram ainda de ser promessas. Aliás, se compararmos com outros Estados europeus, Portugal e Espanha estão longe daqueles que mais partilham serviços públicos. Segundo um estudo recente, há 1.551 serviços públicos transfronteiriços na UE, sendo que 30% deles estão entre a Bélgica, os Países Baixos, a Alemanha, a Áustria e a França. Apenas 1,75% destes se localizam entre os dois Estados ibéricos. É um número difícil de aceitar se considerarmos o atual estado de abandono demográfico e de carência de infraestruturas e serviços públicos em muitos dos territórios fronteiriços. Entre Portugal e a Galiza, falta fazer o que ainda não foi feito. Por um lado, avançar com uma estrutura ferroviária que facilite a mobilidade entre as grandes aglomerações urbanas e que projete um eixo atlântico dinâmico, consolidado e sustentável. Por outro, dar espaço aos municípios fronteiriços para que encontrem soluções conjuntas para problemas comuns, garantindo assim o devido acesso da população a serviços públicos essenciais. Tal não será possível se os Estados não libertarem os seus territórios das lógicas centralizadoras e nacionalistas que caraterizam frequentemente a sua governação.