Opinión

Aquele Abril

Mentiria se afirmasse lembrar com clareza o dia mesmo da revolta dos cravos no vizinho Portugal há 50 anos, no 25 de abril de 1974, que era quinta-feira, como hoje. Eu tinha 15 anos e uns meses e com efeito poderia ter essa memória. Mas estranhamente não a tenho. Digo-o porque sim que lembro com suficiente viveza outras datas notáveis anteriores (o assassinato de John Kennedy, a bomba de Carrero Blanco), mas não o dia mesmo da germinação de milhares de flores vermelhas como aves. Lembro, isso sim, as conversas nos dias posteriores no liceu, as expetativas que se tinham deste lado da Raia, e também o medo da maior repressão.

Na altura eu seria membro duma "plataforma cultural" de estudantes lançada polo Partido Comunista da Galiza, e próximo ideologicamente deste: reuníamo-nos em pequenas células clandestinas, por exemplo ao calor da lareira da casa de Coruxo, e debatíamos com variável seriedade (nas versões disponíveis em espanhol) Os Conceitos Elementares do Materialismo Histórico de Marta Harnecker, os Princípios Fundamentais de Filosofia de Georges Politzer, A Revolução Sexual de Wilhelm Reich. De súbito um dia caíu a ditadura em Portugal e esse sábado à tarde lembro estar a falá-lo com alguém numa desangelada festa de estudantes no liceu Santa Irene de motivo hoje desconhecido onde não logrei que os olhos celestes de Estela me fizessem nenhum caso para pedir-lhe dançar ainda que dias antes nos tivêssemos dado um suave beijo de despedida no portal da sua casa antiga na Alameda depois duma tarde grupal de mandalas e projetos de amor universal ao pé da água calma do cais entre cigarros.

Porque é possível que na altura da semana dos cravos Estela já amasse aquele moço alto do liceu de cabelo longo, guitarra e trosquismo, e o nosso beijo para ela tivesse sido só por uma tarde de amizade ou por piedade, que é o mesmo. Mentiria se afirmasse lembrar todos os sentidos das imagens desses dias como esta, todos os fotogramas de Rohmer dum romance de revolta, jovem como o tempo de História que ainda hoje nos espera. Assaltam-me muitas lacunas na memória dos atos. Só acho que dalguma maneira sabíamos que a revolução dos cravos que nós não tínhamos era um prelúdio do que um par de anos mais tarde resultou ser a nossa própria eclosão, tão diferente. Seja como for, então e agora, na Galiza milhares de jovens, centenas de milhares de pessoas, celebramos aquela nova República como se fosse a nossa, porque sempre foi e é também nossa, e nós fazemos parte dela como se Portugal fôssemos nós, porque também somos nós, e voltaremos a sê-lo, quando chegar a toda parte a comunal igualdade.

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