Sem programa nem gestão pública

O brasão da cidade de São Paulo, a maior do Brasil, declara, em bom latim, "não sou conduzido, conduzo". Nessas eleições municipais, não fugiu ao destino e trouxe uma surpresa ao cenário político nacional. Os cidadãos paulistanos alçaram um sujeito que se chama Pablo Marçal ao primeiro lugar na disputa. Trata-se de um coach de extrema direita que desenvolveu um método para subir na vida. Ele mesmo subiu na vida. Se bem iniciou sua carreira em quadrilhas especializadas em fraudes na internet, o tempo e a experiência o levaram a aprimorar sua estratégia com a venda –real e consensual– de mais de 20 livros de aperfeiçoamento pessoal e de programas de aconselhamento à base de "reprogramação neurolinguística, ativação de identidade, desbloqueio cerebral e clarificação de propósito" aos seus cinco milhões de seguidores. Marçal A campanha está marcada pela ascensão do influencer e suas táticas de promoção. Por exemplo, a partir de suas participações truculentíssimas nos debates, onde renuncia a discutir qualquer tema programático para injuriar os oponentes até perderem o controle, criou um concurso com prêmios de R$125 mil para os seguidores que fizerem e compartilharem os melhores cortes. Uma vez que não contam com esse engajamento "orgânico", os outros candidatos vêm gastando milhões com impulsionamento de conteúdo nas redes sociais. Em vão. Mesmo com as redes bloqueadas pela justiça sob suspeita de abuso de poder econômico, o engajamento de Marçal, medido por interações on-line, é oito vezes maior que a soma dos demais concorrentes. O município de São Paulo responde por 10% do PIB brasileiro. Em termos absolutos, é a 60ª economia mundial, à frente de países como Uruguai, Marrocos e Bulgária. Não é a morte da política Quando uma pessoa diz que não gosta de política, o que ela quer dizer? A conexão necessária da política com programa e gestão pública corresponde a uma visão ingênua dos que viveram os anos 90 e 2000 –aí me incluo–. Uma política do fim da história, quando a disputa de perspectivas coletivas deu espaço aos gerentes e à micropolítica, a um terceiro setor que se apresenta pasteurizado, apto a todos os gostos, e à fragmentação social talhada no corolário aparentemente bem intencionado: "Cada um faz sua parte". (O que é a parte que cabe a cada um?). "Vá cuidar da sua vida", tênue variação do bordão onguístico, é o mote dos cursos de Pablo Marçal. Ele mesmo cuidou da própria vida. Desnecessário dizer que Marçal se viu como herdeiro natural de Jair Bolsonaro, padrinho disputado por muitos candidatos e amealhado, aparentemente, pelos largos tostões do atual prefeito em projeto de reeleição. O coach de extrema direita Pablo Marçal renuncia a discutir qualquer tema programático para injuriar os oponentes até perderem o controle Mas sendo efetivamente da família, Bolsonaro vem tentando cuidar da própria vida ao alternar apoios segundo a conveniência do dia e vender muito caro a sua fotografia. Antes de tudo, ele deseja manter capital político para seguir pressionando as instituições nacionais e buscou, novamente, usar a efeméride da Independência do Brasil (7/9) para demonstrar força política em uma grande manifestação popular, em São Paulo, contra suas condenações –o fiasco não poderia ter sido maior–. Marçal, preterido, surgiu de helicóptero na apoteose do ato esvaziado, viu os bonés com o "M" se destacarem ante as camisas amarelas bolsonaristas, criou vários factoides prontos para viralizar nas redes –como ter sido impedido de subir no palanque–. Plantou uma bandeira nacional com os dizeres: "Bolsonaro parou. Marçal começou". Nem "Pós-bolsonarismo" nem "fim da polarização" A política está ligada ao poder, é claro, e gestão pública é apenas umas das coisas que se fazem com poder. É, inclusive, bastante recente. Tem a ver com a ideia de que a História anda para a frente, com o propósito de construir uma sociedade nova, coisa que não figura no horizonte de sociedades fundadas na tradição. O povo como ator político qualificado surgiu ontem, nas linhas do tempo, e pode desaparecer amanhã. Não será um desaparecimento abrupto, ditatorial, em forma de contraposição. As pessoas continuarão existindo, mas basta com que abdiquem da sua vontade, manifestada por organização coletiva, e voltem a ser recurso para as vontades de outrem. Esse é o significado de não gostar de política. A ideia de um futuro diferente –e melhor– era algo dado. Não é mais. São Paulo, nesta semana, registrou o ar mais poluído do mundo. Fogueiras por toda a província, estímulo a transportes poluentes, ausência de políticas de prevenção de desastres. Tem a ver com gestão pública, mas também pode ser premonição.