A saúde que rende

Estávamos no ano 2007 quando Isabel Vaz, então presidente da Espírito Santo Saúde, atual Grupo Luz Saúde, numa entrevista à RTP afirmava: "A saúde é, talvez, uma das maiores áreas de negócio a nível mundial. Diria que melhor negócio do que a saúde, a indústria do armamento". Num Portugal orgulhoso da conquista democrática de um Serviço Nacional de Saúde (SNS) público, universal e (tendencialmente) gratuito, estas palavras geraram indignação e muitas críticas. No entanto, eram reveladoras das verdadeiras intenções dos interesses que, então, se instalavam. Metade dos 243 hospitais de Portugal são privados, e cerca de 40% da população está abrangida por um sistema de saúde privado Passados 17 anos podemos dizer que a saúde em Portugal está controlada por grandes grupos empresariais como a Mello Saúde, a Luz Saúde, os Lusíadas Saúde ou a Trofa Saúde. Metade dos 243 hospitais que existem no país são privados, e cerca de 40% da população está abrangida por um sistema de saúde privado. Do outro lado da moeda está um SNS com dificuldade em responder às crescentes necessidades da população, que se esvazia de profissionais e sangra cada vez mais recursos para os privados. Estará o SNS em estado terminal? Medir o pulso ao SNS Na esperança de que os problemas de saúde desapareçam na época de verão, nas últimas semanas têm fechado dezenas urgências em todo o país. Se durante o resto do ano muitos destes serviços vivem à rasca com um número limitado de profissionais, o período de férias obriga-os a encerrar. O problema atinge especialmente os serviços de obstetrícia. Devido aos encerramentos rotativos há grávidas a ter de viajar quase 200 quilómetros para serem atendidas. A saúde primária não está em muito melhor estado. Em julho tentei marcar uma consulta na minha médica de família, no centro de saúde que me corresponde. Não tendo caráter urgente, só consegui uma vaga para daí a tres meses. Na realidade, para o contexto português, isto é um privilégio, já que 17% da população nem sequer tem médico/a de família. Entre os vários problemas que afetam o SNS, destaca-se a falta de profissionais. Apesar de o número de médicos ter aumentado 30% desde 2015, a procura crescente por serviços de saúde e o facto de muitos profissionais dividirem o seu tempo entre o setor público e o privado resultam numa insuficiência de cuidados. Para compensar a falta de pessoal, muitos serviços deterioram as condições de trabalho aumentando o número de horas extraordinárias e exigindo longos turnos. Perante tais condições, muitos médicos optam por trocar o SNS por hospitais privados onde ganham melhores salários por menos esforço. E assim, a saúde privada vai engordando. Nos últimos 10 anos o mercado de seguros de saúde em Portugal mais do que duplicou, e o volume de negócios do sector privado cresceu 53%. Há uns anos, a saúde privada era uma opção destinada a uma restrita elite económica, que a utilizava para tratar problemas de saúde menos graves com mais rapidez e conforto. Nenhuma intervenção de saúde séria se fazia fora do SNS. No entanto, atualmente, os hospitais privados disponibilizam profissionais de topo e oferecem uma vasta gama de serviços. Salve-se quem puder As dificuldades do SNS resultam, de facto, das más opções políticas dos últimos governos. Desde parcerias público-privadas para construir e gerir hospitais públicos, à subcontratação da grande parte dos exames realizados em ambulatório, ao encaminhamento de certos procedimentos médicos a privados. Tudo isto tem sido acompanhado por uma suborçamentação crónica do SNS que tem levado à estagnação dos salários dos profissionais, à deterioração de infraestruturas e equipamentos e a limitações no funcionamento quotidiano dos serviços. A saúde em Portugal parece estar presa a um círculo vicioso. O mecanismo é claro: fortalecesse o setor privado que ganha capacidade de atrair profissionais e, assim, enfraquecer o público. Os decisores políticos enfrentam as falhas do SNS recorrendo a privados, enquanto a população põe cada vez mais dinheiro em seguros para garantir o acesso a cuidados. Enquanto assistimos à degradação do SNS, aceitamos como se de uma sentença se tratasse: salva-se quem pode, isto é, quem tem capacidade de pagar um bom seguro. Quem não pode enfrenta as longas esperas e limitações no acesso aos cuidados. Lutar pela qualidade do SNS é a forma mais segura de garantir o futuro da nossa saúde individual e coletiva. Exigir aos governos que defendam uma saúde pública, gratuita e universal é garantir a continuidade de uma das principais conquistas da democracia portuguesa. Ainda não é tarde demais.