As formas arcaicas de civilização

Em 1995, ganhei meu primeiro computador e conheci o jogo de estratégia Civilization, que figura entre os melhores de todos os tempos. Deus saberá quantas madrugadas passei, em detrimento de tarefas de casa e qualquer outra amenidade, desenvolvendo impérios desde o Neolítico até meu extermínio ou a conquista do planeta. Após os fracassos iniciais, descobri uma tática infalível. Ao atingir o avanço "Comunismo", a adoção do regime gerava um enorme salto de produção e receita nos impérios de território extenso, ao manter o nível de corrupção baixo e equivalente em todas as cidades. No jogo, a citação que ilustrava o conceito era do arcebispo brasileiro Dom Hélder Câmara: "Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto porque eles são pobres, chamam-me de comunista". O jogo foi mudando e ganhando novas complexidades a cada lançamento, como a distinção entre avanços cívicos e tecnológicos. Em 2005, sinal dos tempos, a quarta versão (Civ IV) substituiu o conceito de corrupção por despesas de manutenção: na maioria dos tipos de governo, quanto maior a distância de uma cidade para a Capital do império, maiores seus custos de corrupção (antes) e de manutenção (depois). Civ IV eliminou o avanço "sindicalismo". Comunismo passou a ser uma tecnologia, em vez de forma de governo, permitindo o (novissíssimo) avanço econômico "Propriedade estatal". "Serviço público" foi introduzido como tecnologia da era medieval, sendo pré-requisito para o avanço legal "Burocracia". A adoção da burocracia trazia 50% a mais de produção e receitas na Capital, com altíssimo custo de manutenção. Na prática, o jogo de 2005 esvaziava o conceito de comunismo ao incompatibilizar as vantagens da Propriedade estatal (boa para territórios amplos) com as da Burocracia (útil para estados menores, com ênfase nas capitais). Pelo menos, a frase de Dom Hélder vinha narrada pelo ator do Sr. Spock, era um deleite escutar. Ele também narrava a de Oscar Wilde para o Serviço público: "A burocracia está crescendo para satisfazer as necessidades da crescente burocracia". Funcionários públicos O leitor há de escusar essa divagação, espero, porque ela assesta um problema estrutural na manutenção do Estado brasileiro (dos Estados, em geral) e, especificamente, do nosso atual governo: a gestão pública. Um 12% da população economica-mente ativa brasileira está no funcionalismo Uma matéria da CNN Brasil de 2023 é um exemplo caricato da antilógica a que somos submetidos. No título "Brasil tem menos funcionários públicos que EUA, Europa e vizinhos e presta serviço de pior qualidade", vemos a conjunção aditiva (e) em vez da óbvia conclusiva "portanto". O artigo segue aviltando a cognição: "[outros países] têm funcionalismo mais inchado, mas atendem melhor a população", empregando conector adversativo. Inexplicável em termos lógicos, trata-se da opção semântica viável quando o objetivo é manter o qualificante negativo "inchado". Segundo o tal estudo, com dados da OIT, 12% da população economicamente ativa brasileira está no funcionalismo, abaixo dos teóricos baluartes do liberalismo EUA (13,56%) e Chile (13,10%), da vizinha Argentina (19%) e dos campeões de qualidade Suécia (25%) e Dinamarca (30%). Qual é a solução, segundo os especialistas consultados pela CNN? Uma reforma administrativa, já em estágio avançado na Câmara dos Deputados, para "retirar privilégios" dos servidores. Na prática, a Proposta de Emenda Constitucional 32 prevê uma versão ainda mais "enxuta" do Estado, com privatizações, terceirizações, preferência de contratações temporárias em vez de concursos públicos e alteração das regras de estabilidade. Fala-se disso em um país que, no mandato do último presidente, exonerou fiscais do órgão de fiscalização ambiental que ousaram, justamente, fiscalizar a ação ilegal de garimpeiros em terras indígenas, para citar apenas um exemplo. Gestão pública Que concepções tão arraigadas, no que concerne ao serviço público, podem permitir a existência de um texto tão disparatado? As que hoje dominam o espaço social, é evidente. No Brasil, é pior do que parece: a maior parte do funcionalismo atual é empregado por municípios em atividades finalísticas (professores, profissionais de saúde, policiais). O serviço dedicado a gerir essa enormidade de nação é mínimo e, proporcionalmente, só vem se reduzindo. A incompetência da gestão é tão flagrante quanto esperada, caso de profecia autorrealizada –ineficiência, redução, mais ineficiência, mais redução, etc.–. Nos mesmos idos de 2005, lembro-me de conhecer adeptos do anarcocapitalismo em fóruns on-line, a gente fazia chacota deles. Hoje são deputados e presidentes.