Claridade, o arranque decisivo de uma literatura de alcance nacional

Fincar os pés na terra: da Claridade à Independência

A revista Claridade é considerada o marco da independência literária cabo-verdiana e este ano assinala o 80º aniversário da publicação do primeiro de nove números.

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photo_camera Un selo coa face de Baltasar Lopes

Na década de 1930 a  situação vivenciada em Cabo Verde é de sofrimento, de miséria, de fome,  uma situação com origem na administração colonial do arquipélago pelo governo de Portugal, principalmente durante o regime fascista do António de Oliveira Salazar. Sem esquecermos a constante e aterrorizadora vigilância da PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado), temida pelo seu método de tortura, nomeadamente atrás das grades do presídio político do Campo do Tarrafal, na Ilha de Santiago, hoje musealizado e que foi a mais temível e brutal prisão política do fascismo até o ponto de ficar para a história como o Campo da Morte Lenta.

Neste contexto, um pequeno grupo de pessoas atentas à realidade do quotidiano do povo das ilhas preocupam-se com a situação e emerge o embrião  de um movimento de emancipação cultural e política, de base burguesa e liberal, centrado na ideia de que o processo de alfabetização e formação intelectual da população é  indispensável para o desenvolvimento de uma consciência de pertença a uma comunidade. É o movimento dos Claridosos, organizados em torno à revista A Claridade.

Passados 80 anos, a revista a  Claridade vai ser reeditada em versão fac-similada para assim trazer até hoje um dos mais importantes movimentos literários cabo-verdianos.

A revista  vai ser reeditada em versão fac-similada. O anúncio foi feito pelo ministro da Cultura e Indústrias Criativas cabo-verdianas, Abraão Vicente, neste passado 3 de outubro durante a assinatura de um protocolo com a editora Media Comunicações, proprietária do Jornal Expresso das Ilhas e gestora da Rádio Morabeza, para uma edição especial da revista. A Media Comunicações terá a responsabilidade de publicar a versão fac-similada da Revista Claridade" e a sua disponibilização  ao público em geral.

Claridade ou como fincar os pés na terra

A revista Claridade é considerada o marco da independência literária cabo-verdiana e este ano assinala o 80º aniversário da publicação do primeiro de nove números. Era março de 1936 quando uma grupo de intelectuais, que já se vinham reunindo desde havia algum tempo, decidiram, sob o princípio de “fincar os pés na terra”, dar à estampa um projecto cultural e literário consubstanciado materialmente numa revista denominada Claridade revista de arte e letras.

Para poderem dar conta da penosa situação de Cabo Verde, começaram por pensar que um jornal periódico seria a arma ideal – isto é, mais eficiente – para combater a situação. Porém, perante a exigência de um depósito de 50 mil escudos, uma quantia exorbitante na época, optaram pelo lançamento de uma revista. 

Rostos da ClaridadeClaridade, o nome atribuído, foi uma revista mas também um movimento literário surgido em 1936, na cidade do Mindelo, em São Vicente, que sob o princípio de fincar os pés na terra defendia a emancipação cultural, social e política da sociedade cabo-verdiana. Os seus fundadores foram os escritores Jorge Barbosa, Manuel Lopes e Baltasar Lopes da Silva, que publicaram o último número em 1966

Do ponto de vista literário, vários estudiosos definem o movimento dos Claridosos como um elemento de contemporaneidade estética e linguística, em que se procurou superar o conflito entre o Romantismo de matriz portuguesa dominante durante o século XIX. Sob a influência do Realismo Nordestino do Brasil, os claridosos procuraram produzir uma literatura baseada na realidade cabo-verdiana e mais atenta às realidades de cada dia.

Os claridosos procuraram produzir uma literatura baseada na realidade cabo-verdiana e mais atenta às realidades de cada dia

O centro editorial da revista era a cidade do Mindelo (Ilha de São Vicente – Cabo Verde) e teve como primeiro diretor Manuel Lopes. Ao longo da sua existência o projeto Claridade produziu um total de nove números mas com pouca, ou sem qualquer, regularidade ou periodicidade. No primeiro ano foram publicados dois números, sendo o primeiro em Março e o segundo em Agosto de 1936. Os restantes números saíram entre 1937 e 1966. A cada número a revista aumentava de volume de páginas, como puro retrato do aumento do número de colaboradores.

Em termos de conteúdos, a Claridade oscilava entre poesia, ensaio, recolha etnográfica, literatura, etc. Há que realçar que a publicitação do crioulo constituía uma forma de manifestação do regionalismo claridoso na sua vertente linguística, uma vez que a Claridade via o crioulo como uma variante dialetal do português metropolitano.

Nos anos 30 podemos falar de uma literatura cabo-verdiana porque a produção literária se manifesta através da elaboração de um discurso identitário para Cabo Verde.

O surgimento da Claridade foi por vezes explicado como o arranque decisivo de uma literatura de alcance nacional embora não se tratar ainda de uma posição anti-colonial. Não é ainda, nem nada que se pareça algo que tenha a ver com a ideia de independência política ou nacional. Mas os espertos coincidem em que nos anos 30 podemos falar de uma literatura cabo-verdiana porque esta iniciação da produção literária manifestava-se através da elaboração de um discurso identitário para Cabo Verde. Discurso esse que pretendia representar e negociar o enquadramento civilizacional do arquipélago numa lógica de identificação (aproximação ou distanciamento) em relação às heranças ou reminiscências culturais e civilizacionais que estiveram na sua génese – africanas e europeias.

Finalmente é de referir que, por ocasião do cinquentenário do nascimento da revista, em 1986, foi publicada em Portugal uma edição fac-similada reunindo os nove números e com um prefácio do professor Manuel Ferreira, renomado estudioso das literaturas africanas em língua portuguesa, e que muito escreveu sobre a literatura cabo-verdiana.
     

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