A maldição dos recursos no meio rural

Boticas é um concelho localizado no extremo norte de Portugal, nas Terras do Barroso, com menos de 5.000 habitantes. A história deste município é parecida com a de muitos territórios do interior da Galiza e de Portugal. A sua situação periférica em relação aos grandes centros de poder determina o seu atual estado de abandono demográfico e económico. Boticas está tão longe da capital, Lisboa, que ali só chegam os serviços públicos mais básicos. De carro demora-se uma hora para chegar ao hospital. A escola secundária mais próxima está a 30 minutos. Às dificuldades de um território que parece só importar às poucas pessoas que ainda ali vivem, junta-se uma recente maldição que está debaixo da terra que pisam: uma grande reserva de lítio. Se tudo correr como planeado pelos promotores, em breve este lítio será explorado por uma empresa britânica, a Savannah Resources, que abrirá uma mina com 593 hectares cuja atividade terá uma duração estimada de 17 anos. Tal como o interior de Lugo resiste à Celulose de Altri, o Barroso luta, há anos, contra esta mina que ameaça os recursos que sustentam a vida da população que ali habita: os solos, a água, e a paisagem. Não à mina, sim à vida Numa reportagem sobre a revolta contra o lítio, um dos moradores dizia: “sabemos que somos uns peixinhos a lutar contra tubarões”. São mesmo. Aquele lítio servirá para fabricar as baterias necessárias para fazer avançar a estratégia de descarbonização da União Europeia e produzir os carros elétricos indispensáveis, dizem, para alcançar a neutralidade carbónica. Cerca de 10% das reservas deste metal na Europa estão em Portugal. A corrida ao lítio envolvia inicialmente a prospeção em várias zonas do país, algumas de grande qualidade ambiental, como a Serra d’Arga em Viana do Castelo, muito próxima do Parque Nacional da Peneda Gerês. O Governo e as empresas envolvidas esforçaram-se para pintar tudo de verde e convencer as populações de que este é o preço a pagar pela transição energética. Graças aos movimentos ambientalistas, à mobilização social e à pressão política exercida na Assembleia da República, foi possível diminuir consideravelmente a área de prospeção e deixar de fora algumas das zonas mais sensíveis. No entanto, em Boticas, o processo está muito adiantado. Será mesmo para avançar. Tal não demove a população e a autarquia de fazerem tudo o que está ao seu alcance para parar o projeto. Reclamam “Não à mina, sim à vida”. Esta luta chegou a Cannes, este ano, num filme realizado por Paulo Carneiro, A Savana e a Montanha, que transforma a revolta contra a mina num “western social”. Qual é o povo que mais ordena? João Galamba, um dos principais defensores da exploração de lítio em Portugal, que no anterior Governo assumiu funções de secretário de estado da Energia e de ministro do Ambiente referiu, reiteradamente, que os “recursos geológicos são dos portugueses, não são do território nem das pessoas do território”. De facto, esta é a lógica que tem guiado as decisões de exploração de recursos no interior do país há muitas décadas. Recursos que se transformam em verdadeiras maldições para as populações locais: são poucos os que têm qualificações para trabalhar nas indústrias que ali se instalam, veem os lucros fugir do país e os impostos ir para Lisboa, e acabam com o seu território destroçado. Tudo isto se faz com pouco ou nenhum diálogo com a população, sem ter em consideração as suas reivindicações. O mesmo sistema que condenara o interior de Portugal e da Galiza a uma situação periférica, pinta-se de verde contra os alicerces do modo de vida rural No Barroso muito tem sido feito para tirar alguma vantagem do abandono territorial. Uma parte significativa da sua população dedica-se a atividades agrícolas e tem transformado a qualidade ambiental do território num selo de qualidade reconhecido para lá dos limites da sua terra. Em 2018, a Organização das Nações unidas para a Alimentação e Agricultura, FAO, classificou aquele território como Sistema Importante do Património Agrícola Mundial, o único em Portugal, devido à riqueza dos seus ecossistemas e elevado valor sociocultural. Além disso, Boticas, juntamente com outros municípios vizinhos, conseguiu posicionar-se no atlas gastronómico português. A construção da mina colocará todos estes esforços em causa, tal como têm alertado várias organizações. O mesmo sistema económico e lógicas de governação territorial que condenaram o interior de Portugal e da Galiza a uma situação periférica, pintam-se de verde para tentar desmantelar os alicerces do modo de vida de muitas comunidades rurais. Habituada a resistir, a população que ali persiste não irá ceder facilmente.